"Tal como a natureza, e sendo nós parte dela, temos os nossos ritmos de dia-noite-dia, seguimento de estações do ano. Momentos de semear, momentos de esperar e regar apenas, momentos de colher." - Catarina Marques Fernandes
Descanso como um embalar de ideias
Vivemos numa fase estranha em termos sociais e políticos, com guerras, confusão governamental e uma crise financeira e habitacional que deixa a sociedade desorientada e cansada. Por outro lado, é uma sociedade em que também se incute o sacrifício e a culpa a quem reconhece que está cansado de tentar sobreviver financeira, física e psicologicamente. E em que a produtividade e a energia constantes são vendidas como receita para o sucesso.
Podemos sentir cansaço físico, cognitivo, social ou emocional. Às vezes, todos ao mesmo tempo quando estamos numa situação em que os nossos limites são ultrapassados, o que, em contexto laboral, pode levar a situações de burnout (Leiter e Maslach, 1988 ) ou rustout (Turpin, 2023).
No primeiro caso, surge depressão e exaustão emocional, cinismo face ao trabalho e às pessoas, desmotivação e sensação de pressão e incompetência e consequente diminuição da produtividade, que a longo prazo podem levar a problemas de saúde física. No segundo, tédio e sentimento de falta de desafio, como se estivéssemos encalhados, afetando este especialmente as mulheres subvalorizadas no local de trabalho.
É antes ainda destas fases que se torna necessário, para todos os géneros, prevenir o resvalar, alimentar e nutrir o nosso corpo e a nossa mente e respeitar os seus ritmos cíclicos. Numa sociedade que nos coloca a olhar para fora constantemente, a ponderar e a agir, são fundamentais momentos de recolhimento, por vezes até de preguiça ou de desligamento temporário.
Tal como a natureza, e sendo nós parte dela, temos os nossos ritmos de dia-noite-dia, seguimento de estações do ano. Momentos de semear, momentos de esperar e regar apenas, momentos de colher.
Clarissa Pinkola Estés, psicanalista jungiana e poetisa que aborda no seu trabalho a sabedoria psíquica de contos tradicionais passada de geração em geração, apresenta no livro Mulheres que Correm com os Lobos o conto “Os Três Cabelos de Ouro” (Estés, 2016).
Um ancião muito velho e fraco, de cabelos, dentes e unhas amarelos, com uma grande corcunda e pele descaída, vai avançando de noite por uma floresta, cheio de dores. Carrega uma lanterna com uma vela que se vai aos poucos apagando, e que se apaga definitivamente quando chega a uma cabana com uma lareira. O velho cai desmaiado à porta. Lá dentro, está uma anciã, que corre para ele e o carrega para frente da lareira, onde o embala como uma mãe embala um filho, dizendo “pronto, pronto”.
Quando a manhã se começa a aproximar, o velho transforma-se num jovem belo, louro e forte, que a anciã continua a embalar. Quando a manhã finalmente chega, o jovem transforma-se num bebé com cabelos cor de trigo. A velha anciã tira três cabelos da cabeleira no menino, atira-os ao chão e eles fazem “Tiiing! Tiiiing! Tiiiing!”. O bebé sai a correr pela porta, olha para trás por momentos, sorri à anciã e sobe aos céus para se tornar no radioso sol da manhã.
Este conto é uma metáfora para a importância do descanso: quando já não conseguimos mais (ou mesmo antes disso!) é momento de segurarmos o nosso animus, a nossa força ativa e criativa no mundo, e de o embalarmos (e a nós mesmos) para ele rejuvenescer e ganhar novamente energia. Depois, pegarmos numa parte dos nossos pensamentos, sentimentos e ideias, simbolizados pelo cabelo, e os deitarmos fora, mantendo aquilo que é essencial para continuarmos e brilharmos, para sermos produtivos.
O descanso não é um privilégio, mas sim uma necessidade. Para que possamos não pensar no que nos cansa, pensar só noutras coisas, sentir apenas, ouvir os que nos amam, fazer terapia e não pensar depois da sessão. E depois voltar a olhar para a nossa vida de outra perspetiva, redefinir objetivos, ajustar o nosso foco para continuarmos a ter ferramentas para lidar com a situação em mãos ou sair completamente dela com um plano de ação e uma alternativa. Manter o que vale a pena e descartar o que já não faz sentido.
Como me disse sabiamente uma pessoa próxima, “é para isso que as pessoas vão de férias”.
Assim, deixo a reflexão: o que é para si descanso? Que atividades, por mais pequenas e curtas no tempo que sejam, o/a fazem sentir revigorado/a, em contacto com a sua essência? E o que acontece dentro e fora de si quando regressa?
Catarina Marques Fernandes
Psicóloga Clínica
Texto integrado no projecto:
“A escrita como ferramenta de expressão, partilha e aprendizagem” – Dialógicos
Referências Bibliográficas
Estés, C.P. (2016). Águas Claras: Alimentar a Vida Criativa. In Marcador (Ed.), Mulheres que Correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem (pp. 351–385) (12ª ed.). Lisboa: Editorial Presença, S.A..
Leiter, M. P., & Maslach, C. (1988). The impact of interpersonal environment on burnout and organizational commitment. Journal of organizational behaviour, 9(4), 297-308.